31.12.09

Vida nova

Ladeira abaixo ia a pedra. O menino ia atrás - e se a pedra machucasse alguém?! Mas a pedra nem queria saber, rolava mais e mais. Lá embaixo um raparigo viu a pedra, e viu que vinha em seu caminho. Disse que era o fim. Mas a pedra pululou por cima dele e parou de rolar a uns metros. O menino e o raparigo comemoraram sem muito ânimo, com a estranha sensação de que algo que deveria ter acontecido não aconteceu.

24.12.09

Construções imagéticas

Com a vontade bigorna de passar o tempo fiquei comigo refletindo: Leio um livro ou escrevo um livro?! Então li o livro que escrevi na sacada, no verde e no azul. Difícil entender. Difícil. Até porque o livro que li - e escrevi, não nesta ordem necessária - estava em braille, e meus olhos penavam a procurar os pontinhos pra tocar.

23.12.09

Desejo de atenção

'Ó o cachorrinho, mamãe, que lindinho! Vamos levá-lo pra casa, vai! Óun, que coisa fofa!' - e o cachorro, que não era besta, pulava e brincava pela praia, mostrando só seu lado gracioso. Gente começou a juntar pra vê-lo. Até que um biólogo veio pra soltar uma tartaruga no mar. 'Ó a tartaruga, mamãe, que lindinha!' - e o cachorro foi dar uma volta, com o rabo entre as patas e uma lágrima no olho esquerdo.

22.12.09

As Cores Bonitas

Num barquinho na lagoa, tantas cores. Vermelho da camisa, verde do horizonte, marinho da água, turquesa do céu. Marfim do chapéu, laranja do biquíni, amarelo da sandália, violeta da flor no cabelo. Mas a cor que lhe agradava era mesmo o negro dos olhos dela.

18.12.09

Contração despercebida

O homem do moustache branco e gordo gritava que todos eles eram tipos frágeis e paspalhos, no mundo só por atenção. Salvador subiu ao palanque, tirou o homem da frente do pedestal e, depois de um discurso comovente, clamou:

- Quem, afinal, não está aqui só por atenção, que levante os braços!

E todos, inclusive o gordalhão de bigode, levaram os braços à cima, de palmas a mostra.

13.12.09

A história hipotética dos Sapos Suicidas

E se houvesse muita gente? Tanta que não haveria ar, comida, calor ou água para todos? E se essa gente fizesse de tudo para que a gente que não respira, não come, não se esquenta e não se hidrata pudesse viver mais tempo sem ar, comida, calor ou água? E se, mesmo com os desentendimentos entre raças e crenças, essa gente não morresse mais? Se para cada carrobomba houvesse um esquadrão antiexplosão, se para cada vírus houvesse vacina, se para cada ferida, bandaid? E se, em qualquer um desses dias que virão, acordássemos imortais?

Deus encheria os vendavais de lâminas e até que toda a humanidade não tivesse mais cabeça, seríamos tais quais os Sapos Suicidas: pularíamos debaixo de rodas de carros, inconformados com nosso antidestino fabricado.

9.12.09

Breve espaço-tempo

Me perguntaram por que escrevo em tão curtos espaços. Faço isso porque quando escrevo, sinto que estou emprestando algo ao papel, com a certeza de que nada será devolvido. E publico só por não ter mais fôlego - a obra continua, e continuará até ser póstuma. Mas tudo bem, o que importa é o que fica: a quintessência...

...ou os quintanares...

8.12.09

O conceito que não se sabe

'É um cabra nervoso, esse Arlindo. Tenho que tomá cuidado. Num sei do que é capaz esse mardito. Mas memo assim tenho que í, né... Porque se num fô, os cabra tudo da cidade vai dizê que eu num sô homi merecedô. E eu sô, sim. Sô cabra macho, sempre fui. Meu véio pai me ensinô desse jeito, e é desse jeito que eu vô continuá sendo. Vô prová pra todo mundo quem é que manda. Que venha o Arlindo, vô acabá com esse mardito. Ah, se vô. E num vai sobrá pedacim dele pra contá história.'

E o curioso escritor não sabia se tinha, com isso, feito literatura.

4.12.09

O apagão

E no meio do banho, a energia vacilou. Lutou para continuar ativa, mas se rendeu. "Você mexeu no chuveiro?!" - não, não tinha mexido... ele achava. O telefone tocou e ele soube que definitivamente não foi culpa do chuveiro: a cidade inteira estava sem luz. Correu para ligar o rádio e logo viu que o país inteiro dormia no escuro. O que restava a se fazer? Imaginar se o fim do mundo fora adiantado ou ir à varanda, observar aquela que seria a noite mais calma do ano. Foi então que ouviu aquele zunzunzum esclarecedor. Há quanto tempo não os via, não ouvia falar neles, que durante tanto tempo acenderam a curiosidade dos homens. Eram os vagalumes, comemorando, em cada piscadela fluorescente:

- Essa noite é nossa!

E o menino viu que podia enxergar no escuro.

2.12.09

Aula de semântica

...e a professora ia dizendo que a expressão "beira do abismo" é um lugar-comum quando o aluno gritou, do fundo:

- Pessimista!